Quando pensamos em ícones da música brasileira, poucos nomes causam um impacto tão profundo e duradouro quanto Ney Matogrosso. Sua trajetória, marcada por uma personalidade singular e uma presença de palco inconfundível, é o tema do filme Homem com H, dirigido pelo talentoso Esmir Filho. Este filme, que já está em cartaz nos cinemas, é uma obra que vai muito além de uma simples biografia: é uma experiência sensorial, um mergulho emocional que nos conecta com a essência de um dos maiores artistas do Brasil.
Quem já teve a oportunidade de ver Ney Matogrosso ao vivo sabe que estamos diante de uma figura quase mítica. Sua voz única, sua fisicalidade e sua personalidade colossal fazem dele um artista como poucos. Ney não é apenas um cantor; ele é uma força da natureza que se forjou a ferro e fogo, determinado a ser quem ele realmente queria ser, independentemente das expectativas alheias.
O filme Homem com H captura essa essência de forma magistral. A narrativa começa com Ney ainda criança, numa cena linda em uma floresta, que fecha um círculo perfeito com o final do filme. É como se a história toda estivesse contida naquele momento inicial, preparando o espectador para uma jornada profunda pela vida e obra desse artista singular.
O diretor Esmir Filho é responsável por dar vida a essa história com uma abordagem que se destaca no cinema brasileiro contemporâneo. Desde sua estreia em 2010 com Os Famosos e os Duendes da Morte, Esmir tem demonstrado uma capacidade única de mesclar o sensorial com o abstrato, colocando o espectador dentro da pele dos personagens e revelando o relevo emocional que os move.
Em Homem com H, Esmir equilibra essa sensibilidade com a necessidade de contar a biografia de Ney Matogrosso de forma descritiva e detalhada. O filme não deixa de lado os momentos mais importantes da vida do artista, mostrando desde a infância até a fase adulta, com todas as suas dificuldades, conquistas e transformações.
Essa combinação de elementos torna o filme uma experiência única, que consegue ser ao mesmo tempo profunda e acessível, íntima e universal.
Um dos grandes destaques do filme é a atuação do ator Jesuíta Barbosa, que interpreta Ney Matogrosso. Sua performance é uma verdadeira façanha: ele acompanha o personagem desde a juventude até a idade adulta, realizando uma transição orgânica e impecável. Jesuíta não apenas reproduz a fisicalidade tão particular de Ney, mas também vibra no mesmo comprimento de onda, iluminando o personagem por dentro.
Além de Jesuíta, o elenco conta com nomes como Rômulo Braga, que interpreta o pai militar severo de Ney, e Hermila Guedes, que dá vida à mãe do artista. As atuações são sólidas e contribuem para construir um retrato fiel e emocionante da vida do cantor.
O filme aborda aspectos delicados da vida de Ney, como seu relacionamento difícil e violento com o pai, que tentava arrancar dele uma sexualidade considerada anormal para os padrões da época. Apesar disso, a relação com a mãe permanece uma ponte forte e intacta ao longo da narrativa.
A trajetória de Ney passa por vários momentos de busca e transformação: o alistamento na Força Aérea, a tentativa de carreira como ator de teatro, o canto em coral, a mudança para o Rio de Janeiro e São Paulo, e até mesmo o período em que viveu de artesanato. Cada uma dessas fases é mostrada com cuidado, revelando o processo de autodescoberta e afirmação do artista.
Um dos pontos altos da história é a formação da banda Secos & Molhados, que marcou profundamente a música brasileira nos anos 1970. Ney entrou na banda com o pé na porta, transformando a visão dos músicos João Ricardo e Gerson com Rádio para o grupo a tal ponto que eles chegaram a sentir que estavam perdendo o controle da coisa.
Embora a banda tenha existido apenas entre 1973 e 1974, lançando apenas dois álbuns, sua influência é incancelável. Recomendo especialmente que todos ouçam as faixas Rosa de Hiroshima, baseada no poema de Vinicius de Moraes, e Sangue Latino, para entender a magnitude desse impacto.
Após o fim dos Secos & Molhados, Ney Matogrosso seguiu uma carreira solo que reflete sua busca constante por autenticidade e autoexpressão. O filme destaca seu primeiro trabalho solo, Homem de Neandertal, que na época foi pouco compreendido, mas que hoje é visto como uma expressão profunda de sua identidade artística.
O repertório de Ney é de venerar de joelhos, com escolhas que revelam seu compromisso em ser cada vez mais ele mesmo. A faixa Homem com H, um baião de Luiz Gonzaga gravado em 1980, é um exemplo dessa busca, e está lindamente representada no filme.
Homem com H é também uma janela para o Brasil de um período complexo, desde a infância de Ney nos anos 1940 até os anos 1970. O filme revela como o mundo daquela época era, de certa forma, menos moralista e conservador do que o que vivemos hoje, especialmente no que diz respeito à arte e à sexualidade.
É chocante perceber, por exemplo, que o filme não tem a menor timidez em relação ao sexo, algo que talvez surpreenda o público contemporâneo. Além disso, a qualidade média da composição musical brasileira da época é mostrada como muito superior ao que se vê atualmente, o que é motivo de reflexão para quem acompanha a cena cultural.
Hoje, Ney Matogrosso tem 83 anos e continua ativo e formidável. Sua figura é, como disse o crítico do Estadão Júlio Maria, “sem idade” e capaz de fazer qualquer um acreditar na eternidade durante o tempo que está no palco.
Homem com H é mais do que uma biografia. É um retrato sensível e poderoso de um artista que, ao mesmo tempo em que construiu uma carreira singular, também reflete o Brasil e suas transformações. É um filme que emociona, inspira e nos faz valorizar ainda mais a riqueza da cultura brasileira.
- Assista ao filme Homem com H nos cinemas para vivenciar essa experiência única.
- Ouça os álbuns dos Secos & Molhados, especialmente as faixas Rosa de Hiroshima e Sangue Latino.
- Explore a carreira solo de Ney Matogrosso, começando por Homem de Neandertal e a música Homem com H.
- Pesquise mais sobre a obra do diretor Esmir Filho, incluindo Os Famosos e os Duendes da Morte e a minissérie Boca a Boca para entender seu estilo sensorial e inovador.
Homem com H é o tipo de filme que nos faz repensar não só a trajetória de um artista extraordinário, mas também a própria forma como consumimos e valorizamos a cultura brasileira. Ney Matogrosso é uma figura única, e o filme dirigido por Esmir Filho faz jus a essa singularidade, entregando uma obra que é ao mesmo tempo um retrato íntimo e um documento histórico.
Se você valoriza cinema de qualidade, performances arrebatadoras e histórias que emocionam, não pode deixar de assistir a Homem com H. E, claro, mergulhar na música e na vida desse artista que, mesmo com todos os desafios, nunca deixou de ser fiel a si mesmo.
Permita-se ser tocado por essa supernova da música brasileira. Você não vai se arrepender.