A Melhor Mãe do Mundo, lançado dez anos após o sucesso de A Que Horas Ela Volta?. Neste artigo, a crítica explora por que o filme confirma as qualidades da diretora — a capacidade de tocar sentimentos sem cair no sentimentalismo e de abordar questões sociais pelo caminho do afeto — e avalia atuação, direção, ritmo e temas centrais dessa pequena odisseia urbana.
A Melhor Mãe do Mundo acompanha Gal (Shirley Cruz), mulher que decide tirar os filhos do ciclo de violência doméstica. Após registrar queixa na delegacia, ela resgata Rihanna (cerca de nove anos) e Benin (cerca de cinco) e embarca numa fuga improvisada pela cidade de São Paulo, empurrando a carroça de catadora de recicláveis onde coloca as crianças. O destino é Itaquera, onde mora uma prima que prometeu acolhê-las.
O roteiro constrói o filme como uma odisseia: pequenos percalços e gestos de solidariedade se alternam enquanto Gal tenta manter a ilusão de aventura para proteger a infância das crianças. A jornada não é só física; é uma travessia emotiva que revela como a violência pode ser normalizada dentro das relações familiares.
“Essas fugas desesperadas que às vezes mulheres têm que empreender, são de cortar o coração, porque a pessoa sai de casa do jeito que está.”
O percurso de Gal mistura momentos de fantasia — luzes na noite, fogos, o encontro com um cavalo manso — com passagens mais cruas e quase documentais, especialmente na estadia na casa da prima, onde a normalização da agressão fica evidente. Essa alternância de tons é um dos méritos centrais da direção de Muylaert.
Anna Muylaert demonstra domínio ao equilibrar o tom fantasioso necessário para preservar a inocência das crianças e o realismo seco que revela as consequências da violência doméstica. A diretora evita a preleção e opta pelo afeto como via de reflexão social — mostrando em vez de explicar. A passagem para um estilo mais próximo do documentário na segunda metade reforça a sensação de realidade e desconforto.
Shirley Cruz entrega uma performance comovente e natural como Gal. Vale destacar a escolha certa de Cruz, que sustenta o filme sem recorrer a artifícios melodramáticos. Seu Jorge interpreta Leandro, o companheiro agressor, compondo um antagonista contido, mas crível.
Um dos grandes acertos do filme é dar às crianças tanto protagonismo quanto à própria Gal. Rihanna e Benin, que aparecem com seus nomes de batismo, trazem uma espontaneidade rara: parecem viver a situação em vez de apenas encenar. Muylaert e a equipe de direção extraiem representações infantis autênticas, preservando a ingenuidade sem iludir o espectador quanto à gravidade do contexto.
- Violência doméstica: O filme mostra como a agressão pode ser normalizada dentro da família e como as vítimas frequentemente enfrentam obstáculos para serem acolhidas.
- Maternidade e proteção: A busca de Gal por um refúgio evidencia o instinto protetor da mãe que precisa fabricar segurança com recursos limitados.
- Infância e fantasia: A manutenção de um mundo lúdico para as crianças é tratada com sensibilidade, sem subestimar o impacto da realidade sobre elas.
- Solidariedade urbana: A odisseia pela cidade revela atos de bondade que, embora pontuais, oferecem alento e mostram redes de apoio informais.
Embora Muylaert não conte aqui com a popularidade de uma atriz como Regina Casé — peça-chave para atrair público em A Que Horas Ela Volta? —, o filme mantêm a mesma preocupação social permeada pelo calor humano. Arriscado dizer que A Melhor Mãe do Mundo pode até ser um filme “mais legal”, pela forma delicada com que trata os personagens e pela coragem em dar voz e centralidade às crianças.
- Prós:
- Direção sensível de Anna Muylaert, que evita o melodrama explícito.
- Atuação natural e tocante de Shirley Cruz e das crianças Rihanna e Benin.
- Equilíbrio eficaz entre fantasia e realismo documental.
- Tratamento humanista de um tema social urgente.
- Contras:
- A narrativa pode parecer lenta para quem espera ritmo mais acelerado.
- Algumas transições de tom podem desconcertar espectadores que prefiram uma linha estética única.
A Melhor Mãe do Mundo é recomendável para espectadores interessados em cinema social brasileiro, fãs da obra de Anna Muylaert e quem valoriza filmes que privilegiam o afeto e a observação humana. Não é um filme de grande espetáculo — é intimista e reflexivo — e pode incomodar quem busca soluções fáceis ou melodramas extremos.
O filme confirma Anna Muylaert como uma voz importante do cinema contemporâneo brasileiro, capaz de transformar uma história de violência e fuga em um relato sensível e esperançoso. Com atuações fortes — especialmente das crianças — e uma direção que sabe dosar fantasia e realidade, A Melhor Mãe do Mundo merece ser visto nas salas de cinema. O preço dos ingressos varia conforme sessão e cidade, mas o valor artístico é, em muitos sentidos, maior do que o investimento financeiro de uma ida ao cinema.