Vitória: A temporada das Fernandas

O cinema brasileiro ganha uma obra singular com Vitória, filme dirigido por Andrucha Waddington, que chega aos cinemas trazendo uma narrativa poderosa e um elenco de peso. Neste longa, Fernanda Montenegro entrega uma atuação emocionante e envolvente que enaltece não só sua personagem, mas todo o conjunto da produção. O filme é inspirado na história real de Joana Zeferino da Paz, conhecida como Dona Vitória, e aborda temas urgentes como a violência urbana, a corrupção e a solidão na terceira idade.

Contexto e Direção

Andrucha Waddington assume a direção de Vitória com a responsabilidade de dar vida a uma história que carrega um forte teor social e emocional. É importante destacar também o crédito ao cineasta Breno Silveira, que participou do projeto até seu falecimento em 2022, e cuja contribuição foi reconhecida pela produção. O longa não apenas presta homenagem a uma mulher que enfrentou a violência e a negligência, mas também reflete sobre as dificuldades enfrentadas por idosos em contextos de insegurança e abandono institucional.

Fernanda Montenegro: Protagonismo e Sensibilidade

Fernanda Montenegro, considerada a maior atriz do cinema brasileiro, protagoniza o filme com uma performance que traz profundidade e autenticidade à personagem Nina, uma senhora idosa que vive sozinha em um bairro marcado pela violência. O destaque de sua atuação é justamente a forma como ela humaniza uma figura frequentemente relegada a papéis secundários e estereotipados no cinema. Nina não é apenas a “avó querida” ou a “conselheira”; ela é uma mulher de coragem, que enfrenta com determinação a dura realidade que a cerca.

O filme destaca a importância de dar voz e protagonismo a personagens idosos, algo raro na cinematografia nacional e mundial. Esse protagonismo não só enriquece a narrativa, mas também abre espaço para debates sobre o envelhecimento, o isolamento social e a invisibilidade desses indivíduos diante das instituições e da sociedade.

Enredo e Desenvolvimento

A história é livremente adaptada do caso real de Joana Zeferino da Paz, falecida em 2023, que ficou conhecida como Dona Vitória. No filme, Nina começa a se preocupar com o aumento da violência em seu bairro e decide agir filmando a movimentação de traficantes de drogas vista de sua janela. Seu objetivo é colaborar com a polícia, mas ela se depara com uma série de barreiras — burocráticas, institucionais e até mesmo de corrupção — que dificultam a investigação.

Essa dinâmica cria um microcosmo tenso e realista que retrata o cotidiano de uma idosa diante de um cenário de insegurança e impunidade. A solidão de Nina é um elemento central da trama, reforçado pela sua rotina simples: fazer compras, lidar com vizinhos e manter sua casa como seu refúgio, ainda que esse refúgio seja constantemente ameaçado pelos tiros e pela violência externa.

Personagens de Apoio e Relações Humanas

Além da atuação magistral de Fernanda Montenegro, o filme conta com um elenco de apoio que contribui significativamente para a construção da narrativa. Destacam-se:

  • Alan Rocha como Flávio, um jovem que ajuda Nina e se torna uma ponte para que ela consiga superar algumas das barreiras impostas pela violência e pela burocracia;
  • Linn da Quebrada como Bibiana, vizinha de Nina, que simboliza a diversidade e a complexidade das relações comunitárias;
  • Marcinho, um garoto que auxilia Nina com as compras e cuja trajetória inclui conflitos relacionados ao uso de drogas.

Esses personagens enriquecem a trama, criando vínculos emocionais que ampliam o impacto da história. A relação de Nina com Flávio, em particular, é fundamental para mostrar que, mesmo diante da solidão, é possível construir alianças e encontrar apoio.

Temas Centrais e Crítica Social

Vitória é um filme que não se limita a contar uma história individual, mas que aponta para questões sociais graves e contemporâneas. Entre os temas mais relevantes estão:

  1. Violência urbana: O filme retrata a experiência de uma idosa que presencia o aumento da violência em seu bairro, mostrando o impacto direto dessa realidade no seu cotidiano e na sua saúde emocional.
  2. Corrupção e burocracia: A dificuldade de Nina em conseguir que a polícia e as autoridades levem a sério suas denúncias evidencia um sistema corroído e ineficiente, que muitas vezes falha justamente com os mais vulneráveis.
  3. Solidão e envelhecimento: A narrativa dá visibilidade à solidão dos idosos, um tema pouco explorado no cinema, e mostra como essa condição pode ser agravada por um ambiente hostil e por uma rede de apoio fragilizada.

O filme também aborda a relação conflituosa entre Nina e a polícia. Inicialmente, há uma esperança de que as filmagens possam ajudar a iniciar uma investigação, mas essa expectativa se transforma em frustração diante da desconfiança e da falta de ação das autoridades. Essa dinâmica reforça a crítica à ineficácia do sistema de segurança pública e à impunidade.

O Poder do Registro Visual

Um dos elementos centrais do longa é a câmera que Nina compra para registrar a movimentação dos traficantes. Esse recurso simbólico ganha força ao longo da narrativa, representando não apenas uma tentativa de resistência, mas também uma forma de documentar a realidade que muitos preferem ignorar. O ato de filmar se torna uma arma poderosa contra o silêncio e a invisibilidade.

Essa escolha narrativa aproxima o espectador da experiência da protagonista, criando uma tensão constante entre o desejo de denunciar e a dificuldade de ser ouvida.

Aspectos Técnicos e Narrativos

O filme utiliza efeitos sonoros de forma estratégica para transmitir a sensação de insegurança e angústia que permeia o ambiente de Nina. Desde o início, os tiros e os barulhos externos invadem o espaço da casa, que deveria ser um local de conforto, transformando-o em um cenário de tensão constante.

Apesar da força da trama e da atuação principal, Vitória apresenta momentos em que a narrativa parece se afastar do ritmo de urgência criado, especialmente em cenas que tentam desenvolver personagens secundários ou criar saltos temporais mínimos. Essas escolhas, por vezes, podem dispersar a atenção do público e diminuir o impacto da história.

Outro ponto que poderia ter sido mais explorado é a análise da mídia e seu papel diante da denúncia feita por Nina. O jornalista presente na história é um intermediário importante, mas sua rotina e motivações não são aprofundadas, o que poderia enriquecer a discussão sobre a cobertura da violência urbana e a responsabilidade social da imprensa.

Relevância do Caso Real

O filme é inspirado no caso real de Joana Zeferino da Paz, que enfrentou desafios semelhantes aos da personagem Nina. Esse caso ganhou notoriedade em 2005 graças ao trabalho do jornalista Flávio Gusmão, que posteriormente lançou um livro detalhando essa batalha contra a violência e a corrupção.

Conhecer o contexto real enriquece a experiência do espectador e mostra como a arte pode ser uma ferramenta poderosa para dar voz a histórias que, de outra forma, poderiam permanecer esquecidas.

Conclusão e Recomendações

Vitória é um filme que merece ser conferido nos cinemas, especialmente pela atuação magnífica de Fernanda Montenegro, que transforma a experiência da personagem Nina em um retrato sensível e corajoso da realidade dos idosos em ambientes violentos e negligenciados. O longa traz à tona debates importantes sobre violência, corrupção, envelhecimento e solidão, oferecendo uma narrativa que emociona e provoca reflexão.

Embora apresente alguns momentos de dispersão narrativa e não explore completamente todas as possibilidades de sua trama, o filme funciona principalmente por causa da força de sua protagonista e do contexto social que aborda. É uma obra que valoriza o cinema brasileiro ao propor uma história com impacto social e humano profundo.

Se você busca um filme que vá além do entretenimento, que traga uma crítica social contundente e uma atuação que toca o coração, Vitória é uma excelente escolha.

Onde assistir

O filme já está disponível nos cinemas brasileiros. Recomendamos fortemente que você prestigie essa produção nacional nas salas de exibição para aproveitar toda a potência da atuação de Fernanda Montenegro e a atmosfera construída pela direção de Andrucha Waddington.

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