“Emilia Pérez”: bem que os mexicanos avisaram

O filme “Emilia Pérez”, dirigido por Jacques Audiard e estrelado por Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón e Selena Gomez, chegou aos cinemas com uma proposta audaciosa e relevante: representar uma mulher trans em uma campanha para o Oscar, algo inédito e significativo para a comunidade LGBTQIA+. No entanto, apesar da importância simbólica dessa indicação, o longa tem gerado polêmica e críticas contundentes, especialmente vindas do México, onde a história se passa. Este artigo analisa os principais pontos que envolvem Emilia Pérez, destacando os problemas culturais, narrativos e éticos que cercam o filme.

Contexto e importância histórica da indicação

A indicação de Karla Sofía Gascón como atriz principal, uma mulher trans, representava um marco para a academia e para a luta contra o preconceito. Em um momento complicado para a comunidade LGBTQIA+, a indicação parecia um manifesto de acolhimento e aceitação.

Porém, essa conquista simbólica não pode ser dissociada dos problemas que o filme carrega, que acabaram por fragilizar a campanha e gerar uma reação negativa, especialmente no México.

O filme e suas controvérsias culturais

“Emilia Pérez” é uma produção que se passa no México, mas que apresenta uma série de falhas graves em sua concepção cultural. O roteiro, assinado exclusivamente pelo diretor francês Jacques Audiard, carece da participação de roteiristas mexicanos ou especialistas no tema, o que resultou em uma visão distorcida e ofensiva da realidade mexicana.

O filme retrata a história de “Manitas”, um chefe de cartel de narcotráfico que decide fazer a transição de gênero, renascendo como Emilia Pérez. Para isso, ele precisa forjar a própria morte, afastando-se da família e da mulher interpretada por Selena Gomez, que, por sua vez, foi transformada em uma personagem mexicano-americana, apesar da atriz não ter fluência no espanhol mexicano.

Essa narrativa foi vista como uma telenovela antiquada, com diálogos artificiais e situações pouco críveis, especialmente para o público mexicano. A ausência de atores mexicanos no elenco principal e a escolha por atores de outras nacionalidades, sob a justificativa de que não foram encontrados “atores adequados” no México, reforça a percepção de preguiça cultural e eurocentrismo da produção.

O retrato dos cartéis e suas consequências

Outro ponto que causou indignação é a forma como o filme aborda a violência dos cartéis de narcotráfico. No México, estima-se que cerca de 500 mil pessoas tenham sido assassinadas em decorrência dessa violência, além de outras 60 mil desaparecidas. O controle brutal dessas organizações sobre regiões inteiras do país é um problema real e urgente, que não pode ser tratado com descaso ou romantizado.

Em “Emilia Pérez”, a personagem principal, que provavelmente teria assassinado milhares durante sua vida criminosa, busca reparação por meio de um trabalho em um instituto para encontrar desaparecidos. O filme sugere que esse esforço seria suficiente para apagar seu passado, culminando em uma tragédia que a santifica, o que para muitos mexicanos é um insulto e uma distorção da realidade.

Problemas linguísticos e falta de autenticidade

Além das questões narrativas, o filme apresenta uma salada de sotaques e expressões idiomáticas do espanhol, sem qualquer supervisão de um falante nativo mexicano. Essa mistura incoerente reforça a sensação de descaso cultural e arrogância da produção, que parece não se importar com a autenticidade necessária para retratar o México.

Mesmo Selena Gomez, que interpreta a esposa do protagonista, reconheceu suas limitações com o idioma e se esforçou para fazer o melhor possível, mas a falta de cuidado do roteiro é evidente e prejudica a imersão no universo do filme.

Aspectos positivos e momentos de destaque

Apesar das muitas críticas, “Emilia Pérez” não é um filme sem méritos. Alguns momentos se destacam positivamente, como o primeiro diálogo entre o chefe do cartel e a advogada interpretada por Zoe Saldaña, que é bem escrito e executado. A sequência em que Zoe canta “El mal” também funciona bem, com uma coreografia e encenação bonitas, ainda que a música em si não seja forte o suficiente para sustentar uma indicação ao Oscar de melhor canção.

Repercussões e polêmicas na campanha ao Oscar

O filme recebeu 13 indicações ao Oscar, algo que a crítica especializada, incluindo Isabela Boscov, considera exagerado, com exceção da indicação para Zoe Saldaña. A campanha de “Emilia Pérez” sofreu um baque após acusações falsas feitas por Karla Sofía Gascón contra Fernanda Torres, que negou veementemente qualquer campanha de ódio contra a atriz brasileira.

Essas acusações não só foram infundadas como também prejudicaram a imagem do filme e de toda a equipe, além de demonstrar uma falta de compreensão do contexto cultural e da importância da representação para o Brasil e para o público latino-americano.

Conclusão: uma oportunidade perdida

“Emilia Pérez” tinha tudo para ser um marco no cinema internacional, ao representar uma mulher trans em um papel principal indicado ao Oscar. No entanto, a falta de cuidado cultural, o roteiro problemático e as polêmicas envolvendo a campanha acabaram por transformar o filme em um desastre anunciado, conforme alertavam os mexicanos.

É uma pena que uma conquista tão significativa tenha se dado por meio de uma obra que não respeita a complexidade e a dor de um país marcado pela violência dos cartéis, e que menospreza a riqueza cultural do México.

O filme levanta importantes discussões sobre representatividade, mas também serve como um alerta sobre a necessidade de responsabilidade e autenticidade ao contar histórias que envolvem culturas e realidades tão sensíveis.

Para quem busca um olhar mais crítico e informado sobre “Emilia Pérez”, é fundamental considerar tanto o contexto histórico da sua indicação quanto as múltiplas camadas de problemas que o filme apresenta, sobretudo para o público mexicano e latino-americano.

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