“Nosferatu”: o horror alucinatório de Robert Eggers

Robert Eggers é um cineasta cuja obsessão pelo detalhamento histórico e autenticidade nas reconstituições de época tem se tornado sua marca registrada. Em seus quatro longas — A Bruxa, O Farol, O Homem do Norte e agora Nosferatu — Eggers mergulha profundamente em mundos passados, recriando-os com um nível de minúcia que poucos diretores contemporâneos conseguem alcançar. Seu mais recente trabalho, Nosferatu, atualmente em cartaz nos cinemas, é um exemplo emblemático dessa dedicação, e uma obra que merece ser vista na tela grande, especialmente para os amantes do cinema gótico e do horror psicológico.

O perfeccionismo obsessivo de Robert Eggers

Um dos aspectos mais impressionantes do cinema de Eggers é o cuidado extremo com cada detalhe, por menor que seja. Por exemplo, na produção de Nosferatu, a figurinista teve que criar vinte versões diferentes de um par de sapatos típicos de um nobre romeno medieval até que Eggers aprovasse o modelo usado por Bill Skarsgård, que interpreta o vampiro Conde Orlock. Esse par de sapatos aparece na tela por apenas alguns segundos, mas essa obsessão se repete em cada elemento visual do filme — desde as lapelas dos sobretudos até a arquitetura das casas e vilarejos retratados.

Essa dedicação não é apenas estética, mas também histórica. Eggers recria mundos passados com uma autenticidade tão convincente que a própria ambientação se torna um personagem do filme. Isso é especialmente evidente em Nosferatu, que se inspira no clássico expressionista alemão de 1922, dirigido por F.W. Murnau, que por sua vez é uma adaptação não autorizada do livro Drácula, de Bram Stoker.

Trama e personagens: uma releitura do clássico Drácula

A história básica de Nosferatu acompanha Thomas Rutter (Nicholas Hoult), um jovem que precisa fechar um contrato imobiliário com um nobre romeno, o Conde Orlock (Bill Skarsgård), na cidade alemã de Visbourg. O contrato só pode ser assinado no castelo do conde, na Romênia, e Thomas parte para lá, apesar do pressentimento ruim de sua esposa Ellen (Lily-Rose Depp).

Ellen é uma personagem angustiada, sempre à beira do colapso nervoso, atormentada por sonhos que misturam horror e desejo sexual. Ela está, sem saber, vinculada a um contrato com o Conde Orlock, e a viagem de Thomas para a Transilvânia é um estratagema do vampiro para afastar o marido e tomar Ellen para si. A tensão da situação contamina até o casal amigo com quem Ellen está morando, aprofundando o clima de doença e superstição.

O médico da família, interpretado por Aaron Taylor-Johnson, busca ajuda em um professor místico e ocultista (Willem Dafoe), que funciona como uma contraparte do lendário Van Helsing, o caçador de vampiros. Dafoe rouba a cena com sua atuação, trazendo uma dimensão mística e intelectual ao filme.

Autenticidade histórica e ambientação

O que diferencia Nosferatu de Eggers de outras versões do mito do vampiro é, sem dúvida, a fidelidade histórica e a autenticidade dos detalhes. Desde o linguajar dos personagens até a arquitetura visigótica do castelo na República Tcheca, cada elemento foi cuidadosamente pesquisado e recriado. Historiadores especializados nos períodos medievais e do início do século XIX têm elogiado a minúcia com que Eggers aborda esses mundos.

O Conde Orlock de Bill Skarsgård é uma figura de decomposição e corrupção, baseada em retratos reais de nobres romenos entre os séculos XV e XVII, o que o torna distinto das representações tradicionais do vampiro. O castelo onde se passa boa parte da ação, que também foi usado por Werner Herzog em sua versão de 1979, é uma ruína visigótica magnífica que reforça a atmosfera sombria e decadente do filme.

Fotografia e linguagem visual

A fotografia de Nosferatu é esplêndida, destacando-se pelo uso da luz, da névoa e das composições visuais. Eggers utiliza técnicas inusitadas, como closes superaproximados com fundos chapados, criando uma sensação de que os personagens habitam uma dimensão mental paralela à realidade. A câmera também gira em um mesmo eixo durante diálogos, evitando o tradicional plano e contraplano, o que confere um ritmo e uma tensão únicos à narrativa.

Além disso, os planos gerais que mostram a cidade de Visbourg lembram a observação de formigas em um formigueiro, reforçando a sensação de opressão e destino inexorável que permeia o filme. Esses recursos visuais são parte essencial da experiência sensorial e emocional que Eggers propõe.

Temas centrais: dualidade, racionalidade e o inconsciente

Mais do que um simples filme de terror, Nosferatu é um drama psicossexual que explora a dualidade entre o racional e o sobrenatural, o consciente e o inconsciente. A Alemanha mercantil dos anos 1830, retratada no filme, valoriza o racionalismo e o objetivo a tal ponto que não consegue se defender do sobrenatural, pois não possui instrumentos para compreendê-lo.

“Não fomos tanto iluminados pela essência, quanto cegados por ela.”

Essa frase dita por Willem Dafoe sintetiza uma visão crítica sobre a modernidade e a perda da capacidade humana de lidar com o inexplicável. É interessante notar que foi nesse mesmo mundo racionalista e mercantilista que nasceu o movimento gótico, que deu origem ao próprio mito do vampiro, simbolizando justamente essa necessidade humana de lidar com o desconhecido e o arcaico.

Eggers, que cresceu na Nova Inglaterra, uma região americana marcada por fortes vestígios do passado colonial puritano, traz para o filme a ideia de que o ser humano tem uma necessidade evolutiva de incorporar em sua imaginação zonas associadas à superstição, ao medo arquetípico e ao tabu sexual — elementos que alimentam tanto os contos de fadas originais quanto a ficção gótica.

Paixão, desejo e horror

Ao contrário do que muitos acreditam, as versões mais recentes do mito de Drácula, como as de Coppola e Herzog, e agora a de Eggers, não distorcem o texto de Bram Stoker, mas trazem à tona subtextos que na época do livro não podiam ser expressos abertamente. Em Nosferatu, o desejo sexual reprimido é o motor da trama.

A obsessão do Conde Orlock por Ellen é o gatilho para o horror que se desenrola, e o tormento da personagem feminina está profundamente ligado a um desejo proibido e perturbador. É essa dimensão psicossexual que torna o filme mais complexo e interessante, indo além do terror clássico e explorando as camadas mais profundas do inconsciente humano.

Conclusão: uma experiência cinematográfica única

Nosferatu de Robert Eggers não é um filme para todos. A distância emocional que muitos podem sentir em relação aos personagens e à narrativa faz com que a experiência seja mais intelectual do que visceral para alguns espectadores. No entanto, é impossível não admirar a maestria técnica, o rigor histórico e a profundidade temática que o diretor imprime em cada cena.

Para quem valoriza o cinema autoral, o horror psicológico e a construção de mundos autênticos e imersivos, Nosferatu é uma obra essencial. Ver este filme na tela grande é quase um imperativo, pois raramente se encontra hoje diretores capazes de transformar cada frame em uma pintura viva, carregada de significado e beleza.

Robert Eggers não apenas recria o passado; ele nos convida a atravessar o espelho do tempo e a viver, ainda que por momentos, outras vidas e outras eras. Essa é a verdadeira essência do seu cinema — um convite à imersão total, que transcende o entretenimento e se transforma em uma experiência sensorial e intelectual profunda.

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